A filosofia da capoeiragem
Gabriel Kafure da Rocha
Resumo:
Este
artigo visa discutir o processo de desconstrução da capoeira maranhense sob o questionamento
da hipótese de que no início tudo era uma coisa só: capoeira, tambor de crioula, frevo, samba etc. Por
desconstrução entenderemos primeiramente o tipo de transformação que se inicia
no discurso acerca do folguedo ou cultura popular. Logo, um discurso sobre a
capoeira começou a se formar a partir da
repercussão dessa arte supostamente vinda da Bahia, com os mestres Bimba e
Pastinha. Então podemos dizer que essa palavra mestre é a primeira desconstrução
fundamental de toda a capoeira, pois sendo ela uma luta afrobrasileira
transmitida pelos escravos vindos de angola e congo, questionamos até que ponto
ela era ensinada por supostos "mestres", já que diversas origens
rituais foram atribuídas a esta cultura. É de fato é impossível encontrar uma
origem específica desta brincadeira popular ou arte marcial, logo a nível do Maranhão
analisaremos a história da linhagem de mestres da capoeiragem de Patinho e suas
metodologias bem como as ligações com religiosidade, musicalidade e filosofia.
Palavras-Chave: Capoeiragem,
Desconstrução, Religiosidade, Corpo, Mestre Pato.
1.
O
Mestre: Corpo, Musica e Religião
“Ser
mestre é estar pronto para aprender, não esconder conhecimento e torná-lo em
uma leitura ao alcance de todos” (PATINHO apud ALLEX, F. 2012, p. 3)
Ao mesmo tempo que Pastinha dizia a
capoeira tem seus mistérios e segredos, é na figura do mestre que estes se
revelam e surpreendem aos observadores muitas vezes na hora da capoeira, em
golpes perspicazes que podem levar até a finalização, ou seja, a morte. O herói
mítico da capoeira é o Besouro Mangangá, que recentemente teve até um filme em
sua homenagem, era um exímio capoeira capaz de vencer vários homens. Dizem que
foi parente de um mestre baiano já falecido chamado Cobra Verde. Entretanto, é
na figura do Mestre Pastinha que vemos esta humildade de estar pronto para
aprender, como diz sua ladainha “grande pequeno sou eu”.
Um dos requisitos para ser mestre é ter uma ladainha
de sua autoria, são cantos que iniciam a roda após o “iê”, grito de
liberdade saudação a Exú, o dono do
caminho.
“Exú é o mestre da vertigem! (...) a
Capoeira Angola desconstrói este mesmo corpo, realçando seu lugar de
encruzilhada. Em qualquer dos casos, no entanto, a referência é Exú, pois ele
constrói tanto quanto desconstrói o corpo. (...) O corpo, assim, é o processo
de subjetivação, por um lado, e da vinculação com os antepassados, por outro.”
(OLIVEIRA. 2007. p. 122)
Podendo também ser chamado
Legbara, Legba, após ser saudado o dono do corpo, o mestre agora junto com o
coro entoam mais uma série de iês saudando outros aspectos religiosos do jogo
da vida e dos seus jogadores para que comecem os jogos, essa saudação é chamada
de chula e tem a forma chamada “Iê viva meu Deus, Iê viva meu mestre, Iê na
volta que o mundo deu, Iê aruendê”. Durante os jogos seguem-se as cantigas
corridas e quadras, que podem ser revezadas por outros participantes da bateria
(os tocadores da roda, composta pelos instrumentos berimbau, agogô, reco-reco,
atabaque e pandeiro).
Essa ligação entre os ritmos e os toques de
berimbau se explicita bem através do toque de palmas na hora da roda na casa do
mestre patinho. O toque de iúna, que representa o canto de acasalamento desse
pássaro, assim também como o ritual fúnebre, é enumerado com uma palma só. O
samango, gíria que representa homens preguiçosos ou policiais é enumerado com
duas palmas. O toque de angola são três palmas. A cavalaria que representa o
toque de fuga contra este batalhão militar são quatro palmas. Assim temos uma idéia
de como as palmas representam uma escala de ascensão rítmica que simbolicamente
representam o renascimento (iúna) até a fuga e liberdade (cavalaria). É
interessante que dentro dessa ordem ritual, algo universal em todas as rodas de
capoeira é os jogadores se benzerem com o símbolo da cruz ou a estrela de cinco
pontas também chamada de “Salomão” em alguns lugares também se associam a
estrela de seis pontas dos judeus ou Rei Davi.
“Esta figura, conhecida
como Cinco Salomão, Estrela de Salomão –
que também pode ser o que os capoeiras chamam de jogo de dentro e jogo de fora,
entre outros diversos nomes –, surge como dois triângulos interligados que
representam tradicionalmente a água e fogo e traduz o jogo e suas
transformações: A ginga estabelece a ligação rítmica entre os capoeiras que são
as partes ligadas através do jogo com o todo através da roda, onde os
instrumentos, cânticos, no jogo de
malícia e de segredo são os vetores
da unidade.” (FERREIRA, Bruno. 2008, p. 8)
Quando os jogadores entram na roda,
pedem suas benções e jogam imitando um ao outro, tais como uma experiência do
espelho em que contemplam o ser real, aquele que está do outro lado, como um
reflexo verdadeiro, assim é uma das formas que começam a se comunicar
corporalmente. Ainda nesse sentido filosófico a voz do corpo sadio é a voz mais
leal e mais pura, fala do sentido da terra a música e a voz é a invocação do
sagrado.
“na
própria entrada do jogador na roda quando ele risca no chão a cruz, que para
muitos é cristã, mas que como veremos em Fu-Kiau ela representa a cruz congo,
simbolizando o cruzamento de duas energias, a horizontal (animal) com a
vertical (sagrada), que desenhadas sobre a terra delimitam o espaço mínimo da
consagrado para a realização do ritual.” (LIGIÉRO, 2011, p. 131).
Os mestres
são o espelho dos discípulos, são os principais atores, pessoas a quem o grupo
constituidor da ação dramática atribui um alto status perante determinado
conjunto de pessoas: “os star groupers
são os principais protagonistas, os líderes de facções, os defensores de uma
religião, os revolucionariamente de vanguarda” (TURNER, 1974, p. 72). É a
representação dos instrutores que tem um poder de ser obedecido pelos que estão
no estado liminar. Essa relação de obediência se caracteriza por uma
camaradagem, e não por uma estrutura de posições hierárquicas. Esse estado
interestrutural é característica do ser
transicional, que não está nem lá e nem cá, chave de entendimento do
conceito persona liminar.
O
mestre surge de uma admiração popular acerca da maestria de um indíviduo no
domínio das artes corporais. O mestre de capoeira figurado muitas vezes no
“malandro” pode ter como uma base
epistemológica o conhecido "Mestre-sala" dos blocos de samba,
um sujeito bem vestido, provavelmente de branco, que carrega a bandeira ou
estandarte do bloco e tem em seu
vestuário uma característica fundamental; o lenço de seda. Este adereço por
mais charmoso que fosse, tinha uma função de proteção essencial, já que a seda
boa tinha uma espécie de fibra tão
resistente que se uma faca a atingisse não a cortava. Sendo assim, este lenço
representava um patuá, um amuleto de proteção do pescoço do capoeira. Semelhante função a do
mestre sala tinham os frevistas que protegiam também as bandas marciais,
principalmente as partes da frente, o grupo de
tocadores de tambor, assim também os capoeiras eram e ainda são muitas
vezes ogans em terreiros, tinham como função proteger o pai de santo quando
incorporado de invasões policiais e etc.
Na figura do mestre existe uma tênue segmentação da própria
classe subalterna em que esse sujeito, por sua prática subversiva de uma malandragem figurada em maltas e
gangues, tem a admiração dos próprios criminosos. Relativizando o poder do
fraco, ao mesmo tempo que o mestre é obedecido ele é a imagem da possibilidade
da desobediência “[...] o poder dos fracos é o poder de obedecer e, por isso
mesmo, destruir a opressão pela obediência malandra, oportuna e sagaz” (DA
MATTA, 1997, p. 294).
O
conceito de liminaridade busca entender
essas características evidenciadas pelo rito da capoeira, evento no qual uma
antiestrutura se opõe a um status quo,
abrindo assim possibilidades de transformação social. Victor Turner fala também do poder dos fracos
em termos performático. "Nossa atenção prende-se agora à questão da
liminaridade e dos poderes rituais dos fracos" (TURNER, 1974, p. 125).
Este aspecto liminar é marca de coisas perigosas nas etapas rituais enfatizadas
como de margem. A performance é uma
parte essencial da antropologia da experiência e coletiva, através da religião
e da música o mestre mantém um elo que une aos supostos inimigos.
2. A desconstrução da capoeiragem
A
história da capoeira no maranhão está ligada principalmente a um mestre que foi
discípulo de Pastinha, o conhecido Mestre Canjiquinha. Este foi responsável
também por uma desconstrução da
capoeira, a chamada capoeira contemporânea, que é uma mistura das modalidades
regionais e angola. Canjiquinha ficou famoso por falar que dançava conforme o ritmo
do berimbau, se ele tocava rápido era regional e se tocava devagar era angola.
Essa era a sua ideologia que ao mesmo tempo reduzia a uma função rítmica as
modalidades da capoeira, quando regional e angola eram distintas por muitos
outros fatores tais como principalmente a nivelação social, já que os alunos de Bimba eram "brancos"
enquanto os alunos de Pastinha era composta por proletários da região
portuária, geralmente estivadores, pessoas que carregavam o peso das cargas que
chegavam e embarcavam nos navios. Logo, Canjiquinha mesmo sendo considerado
aluno do Mestre Pastinha, era tido como um bastardo. Já que as diferenças atuais entre a regional
e a angola estão principalmente no discurso de que a angola é mais tradicional
e que foi essencialmente seguida pelos principais alunos de Pastinha, os
mestres João Grande e João Pequeno, este último veio a falecer agora no final
de 2011. Considerando então uma capoeira desconstruída, a capoeira baiana no
maranhão é trazida pelos discípulos de Canjiquinha, sendo caracterizada pelo
termo "capoeiragem".
Capoeiragem Ludovicense é o nome
denominado pelos mestres da cidade de São Luís - MA para um jogo que mistura a
Capoeira Angola com a Capoeira Regional, uma síntese das modalidades e estilos de capoeira. Essa
miscigenação propiciou a caracterização do jogo maranhense de uma maneira
singular, muito semelhante a uma capoeira antiga em que não havia uniformes ou
obrigatoriedade do sapato.
Resumidamente a História da capoeira no
maranhão se dá quando em 20 de Fevereiro
de 1976 se atribui o reaparecimento da Capoeira no Maranhão com a visita do Quarteto Aberrê
(nome do mestre ex-escravo que fez parte da Academia de Pastinha e que foi o
padrinho da Capoeira de Canjiquinha). Este, querteto, composto entre outros pelos Mestres Canjiquinha e Sapo
Bola, foi convidado a permanecer no Maranhão para o desenvolvimento deste esporte neste Estado.
Mestre Sapo ainda assim não foi o
primeiro a surgir no Maranhão, existem relatos que a primeira academia de capoeira
em São Luís, chamada de Bantu; liderada por Roberval Serejo, um escafandrista
da Marinha que aprendeu capoeira no Rio de Janeiro e que veio para o Maranhão
nos anos 60. Roberval aprendeu capoeira
com um mestre Arthur Emídio, baiano de Itabuna. Desde então, a capoeira deixou
de ser praticada em frente ao boteco de cachaça e quitanda, e começou a
ganhar novos espaços em escolas,
ginásios e academias de ginástica. A
academia Bantu funcionou até 1970, ano em que Roberval Serejo faleceu quando
mergulhava a trabalho na construção do
Porto do Itaqui de São Luís. Junto com Roberval se destaca também na academia o
Mestre Diniz, aluno do Mestre Catumbi do Rio de Janeiro “um dos expoentes mais
expressivos e fomentadores da capoeira em rodas de rua, realizadas em praças da
capital.” (ALLEX, F. 2012, p. 3)
Depois de Roberval Serejo, Anselmo
Barnabé Rodrigues, o mestre Sapo, passou a ser a maior referência na capoeira
angola de São Luís. O maior discípulo de
Sapo foi o Antonio José da Conceição Ramos, atualmente o proprietário Centro
Cultural Mestre Patinho, localizado no Centro de São Luís, na Rua São Pantaleão
e também fundador da Escola de Capoeira Angola Laborarte na Rua da Jansen
Muller. Patinho é o representante de uma capoeira bem mística, que trabalha com
cânticos Mina, Baião de Princesa e outros cânticos de descendência iorubá e
cambinda.
Vemos
então o caráter sintético bem presente na capoeiragem ludovicense. Patinho é no
mínimo uma personalidade da boêmia da cidade, uma pessoa irreverente, mas que
ao mesmo tempo teve um trabalho sério de capoeira reconhecido em todo o Brasil.
Além do que a academia Laborarte é tão antiga quanto os grupos mais
tradicionais de Salvador, que tem por volta de 35 anos, entre o GCAP (Grupo de
Capoeira Angola Pelourinho) localizado no Forte de Santo Antônio em Salvador.
A
história de Patinho se dá de forma que sendo proveniente de uma família de
classe média, sofreu preconceito por praticar essa arte de marginais. Sua
família ainda tentou afastá-lo dessa vida, mandou que viajasse e estudasse
outras coisas. Patinho estudou ginástica olímpica, balé, ainda assim pode ter
contato e vivenciar como a capoeira vinha sendo estruturada em outros lugares
do Brasil. Com essa visão beneficiada pode organizar uma capoeira mais fina,
menos agressiva e mais intelectualizada. Semelhante de certa forma aos
preceitos que o próprio Mestre Pastinha teve de formar “pensadores da
capoeira”, o Mestre Patinho é um exemplo claro disso.
Com
isso entramos no aspecto pensador do Patinho examinando seu discurso oral e
problematizando com a máxima escrita nas portas da academia de Pastinha
“mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu
fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista” apud LIGIÉRO (2011, p. 141). São
palavras que para ser compreendidas precisam ser contextualizadas ao fato de
que a capoeira é composta de metodologias. Logo, Bimba teve um papel crucial
nessa perspectiva, compondo uma séria de movimentos como método básico para o
aprendizado da capoeira em poucos meses.
Segundo a monografia de conclusão
do curso de Educação física, o Mestre de Capoeira Nelsinho “apresenta os 4 objetivos do Método Desportivo Generalizado
e, dentre eles, dois se encaixam no perfil das aulas do Mestre Sapo descrito por
seus ex-alunos” BETTI apud BRITTO (2005, p.
41). Logo, desenvolver o gosto pelo belo, pelo esforço e performance e provocar
as necessidades de higiene são partes do método de capoeira maranhanse. Nesse
sentido performático, são algumas características da metodologia do Mestre
Pato, o conhecido jogo em três tempos, três alturas e três velocidades, o qual
ele descreve como:
“Então, sempre que eu estou no treinar
pra jogar, sem instrumento nenhum, o corpo como instrumento e o cântico: “oh
nêga! que vende aí? Vende arroz do maranhão”, gingando, jogando de três, no
médio plano, no rasteiro plano, no jogo de dentro, no jogo de fora, cantando
inclusive pra facilitar o momento que ele for, porque é o seguinte, no meu
ritual de jogo, saiu do jogo foi pro instrumento, não tá com o instrumento na
orquestração, não tá tocando instrumento, tá ao redor da roda, tá fazendo o
coro, porque isso te mantém aquecido, te mantém, facilita quando você for tocar
cantando, porque é um terror quando a agente se desgarra (...) aqui por exemplo
não joga ninguém, não joga capoeira aqui se não tiver tocando, se não estiver
fazendo o canto, que é pra exatamente manter o equilíbrio do instrumental, o
corpo e o canto.” (ANTONIO JOSE DA CONCEIÇÃO RAMOS)
Patinho desenvolveu um método baseado numa
dinâmica ternária, já que a grande maioria das danças populares ligadas ao
Ijexá são ternárias, toque ancestral do qual derivam a maioria dos ritmos
afrobrasileiros tais como o samba, afoxé, maculelê, entretanto a música
melódica dos berimbaus tocando angola é quaternária. Para o mestre, por serem
três berimbaus, a ginga é um triângulo,
os ritmos são lento, médio e rápido e assim por diante. Através de toques
universais de berimbau tais como samango, cavalaria, iúna o mestre demonstra
como o corpo com seu ritmo ternário se harmoniza com os ritmos quaternários.
Então nas palavras Patinho:
“o
primeiro instrumento musical foi o corpo né? e meu mais recente, inclusive
estou viajando hoje pra trabalhar lá fora, e o tema da minha palestra é “Nosso
corpo na capoeiragem”, é um instrumento musical que nós muito pouco sabemos
tocar com ele, né? e em contrapartida, na capoeira o primeiro instrumento todo
mundo pensa que foi o berimbau, mas a capoeira teve como primeiro instrumento o
focar da palma, tem uma diferença grande de bater palma e tocar palma, né?
então vou ser bem objetivo contigo pra ti entender mais rápido o que eu
querendo dizer, é que a capoeira no lugar que ela tá acontecendo, a tendência
dela é a de se integrar com a cultura do lugar, por exemplo no Maranhão a
capoeira tende a se atrelar ao cacuriá, ao tambor de crioula que inclusive há
uma coisa interessante dessa coisa da música na capoeira relacionada ao tambor
de crioula, é que nos temos resquícios de jornais do final da década de trinta
pra quarenta é na manifestação em Turiaçu, Caxias e Penalva na Baixada
maranhese, da capoeiragem que não tinha essa nomeclatura e sim era chamado de
carioca” (ANTONIO JOSÉ DA CONCEIÇÃO RAMOS)
A pernada carioca é uma evidência da
influência deste estado na capoeiragem maranhense. Uma possibilidade remota é a
de que os senhores aristocratas consideravam mais barato comprar escravos
velhos do Rio de Janeiro do que importá-los da África, mas não existe um estudo
mais aprofundado dentro dessa teoria. É certo que o pesquisador Leopoldo Vaz
é um dos maiores defensores dessa teoria que relata que Câmara Cascudo
informa que assistiu a uma pernada executada por marinheiros mercantes, no ano
de 1954, em Copacabana, Rio de Janeiro. Diziam os marinheiros que era carioca
ou baiana. É um dos possíveis nomes da capoeira da capoeira. Enquanto na Bahia
se populariza o Batuque, que é uma das referências da capoeira regional, da
qual o pai do Mestre Bimba era conhecido como grande batuqueiro. No Rio de
Janeiro já se dá o contrário - a preferência é pela pernada, que na verdade
passou a ser o meio de defesa e ataque da gente do povo, sendo marcante naquela
região a formação de maltas, gangues, que se utilizavam dessa luta pernada.
Para Vaz, a pernada chega ao Maranhão pelas fronteiras com o Pará, se referindo
a acontecimentos nos anos de 1890, discorrendo que numa patrulha na região de
Ver-O-Peso: ’estive em patrulha [...] quando vimos alguns indivíduos pulando
jogando carioca." (AE. Secretaria de Segurança Pública. Autos-Crimes,
22/09/1892).
3.
A
Ginga e o Bumba Meu Boi
“O
multifacetado poeta das expressões corporais (...) Patinho mergulhou fundo em
outras áreas afins com o objetivo de multiplicar possibilidades e agregar
valores que possam se complementar. Conclui curso de dança primitiva, moderna e
contemporânea, balé clássico, dança folclórica” (ALLEX, F. 2012, p. 3) Assim,
um dos ensinos mais sutis do mestre é a relação da ginga com o caboclo de pena
do Bumba-meu-boi. No Pará o pesquisador Luis Augusto Pinheiro Leal defende
fortes relação entre o Boi Bumbá e a capoeira.
A ginga é a base da dança da
capoeira, é uma forma de sair de situações difíceis e ao mesmo tempo é um
regogizo, uma forma de manter o corpo em movimento. É ao mesmo tempo a entrada
e a saída. Patinho diz que na ginga dos brincantes do bumba meu boi,
principalmente do próprio boizinho temos uma exemplar forma de ver como o boi
pode ser traiçoeiro com seus coices, que é preciso encantá-lo para poder tirar
a sua carne, a sua língua.
Nesse sentido, “para o negro a glorificação do boi, ‘seu
companheiro de trabalho, quase seu irmão’ passou a ser expressão de muita mágoa
recalcada” nesse “poderoso drama de expressão e quase de revolta popular”, que
se chama o Bumba-Meu-Boi.” FREYRE apud BARROSO (p.33)
Na brincadeira do cavalo marinho, em Pernambuco, é tão
clara a relação da capoeira com o folguedo, que a dança do mergulhão é uma roda
intrépida com simulação de lutas dois-a-dois com claros golpes de capoeira como
a tesoura, o papa-capim e outros movimentos. Assim a ginga é um ponto comum
entre estas brincadeiras de bois, reisados, o candomblé e a própria capoeira,
como a mãe da ginga. Nesse sentido temos também as variações da ginga, entre
elas os currupios, os giros em torno de si, muito comum também na dança do
tambor de crioula.
“A
ginga é um processo, uma sub-estrutura da consciência social, da psicologia
social, própria das sociedades ou culturas coletivistas, que precedem ás
sociedades organizadas. (...) a ginga associa-se intimimamente com cerimônias
de identificação\separação com a natureza, onde a alucinação coletiva, obtida
pelo esgotamento físico comum. (...) pelo sei caráter alucinatório, e
consequentemente de potenciação mental, a ginga era um instrumento importante
de criação cultural, de obtenção para soluções do grupo” (BARBOSA, 1994, p. 46)
Por ser uma estratégia sem finalidade, é algo essencial a
esse método sem fim da capoeira. Ela é a sina do negro da sociedade, é um
símbolo importante da identidade nacional, o gingado do capoeira, o movimento
do “é-já e ainda-não” (OLIVEIRA, 2007, p. 89). É de certa forma o movimento
faceiro, o estar sempre com um pé atrás, a desconfiança.
A capoeira é uma alteridade pela ginga, pela
dança comum a dois jogadores. É pensar em movimento seduzindo o Outro. É uma
ética da estética. O bom jogador se vê pela ginga é de lá que sai toda
mandinga, todo feitiço que faz o temor do oponente.
4. Capoeiragem e os batuques
maranhenses
É bem conhecida o movimento da pernada da punga dos homens
que ocorria e ainda ocorre nas regiões de Rosário, além da movimentação uma
série de características também musicais tais
como cantigas entoadas por um improvisador e rebatidas por um coro, e
mesmo a idéia de duelo, seja com as palavras, seja com as pernas. Na roda da
capoeira vemos ser narrado o que está
sendo jogado, bem como o desafio de jogar, tocar e cantar melhor como
característica da maestria de um jogador. Temos assim uma introdução das
ligações e semelhanças existentes entre estas artes presentes principalmente no
litoral brasileiro e como seus praticantes até hoje se intercalam, já que a
figura boêmia do capoeira está sempre presente na cultura popular, disfarçado,
implícito ou explícito nas manifestações da cultura. Vamos então em direção ao
que será a possível transformação que a capoeira terá neste sentido da unidade
e do múltiplo.
Entre algumas musicas já escutadas em
rodas de capoeira no maranhão podemos citar:
“caranguejinho
tá andando tá andando, a maré ta cheia eu estou esperando”
(Também cantada no
baião de princesa da Casa Fanti Ashanti – São Luís – MA)
“Rodou,
rodou engenho”
“Boi
caminhador, La em casa mamãe diz boi boi caminhador”
(Cantadas em tambor de
crioula)
“Lera
chorou, lera chorou, eu te disse lera vão te tomar teu amor”
(Cantada em Cacuriá)
“É
pedra de responsa, mamãe eu volto na ilha nem que seja montado na onça”
(Música popular cantada
por Zeca Baleiro).
5.
Considerações
finais
A roda da capoeiragem do Mestre Patinho
se inicia com um canto cambinda, que precisa ainda ser escrito de uma maneira
mais tradicional, mas que oralmente traduz uma musicalidade que diz “Cê que Cê
de kuando andalunda, Cê que Cê de kuando eu andá, Cê que Cê de kaya na kaya na
kaya na kayangô”. Segundo o mestre é um canto cambinda que relembra o tempo em
que os negros estavam no navio negreiro, tempo que as culturas se fundiram.
Já no fechamento do ritual o mestre faz
uma reza que diz “salve rainha favorecida das três missas de natal, que nas
nossas frentes ninguém nos persiga que nas nossas costas ninguém nos faça o
mal, dom Luís Rei de França venceu a guerra com muita Fé e com muita esperança,
por isso hei de vencer, por isso havemos de vencer”
Semelhante ao que acontece com os
terreiros de mina onde histórias de encantados e mitos tais como o
Sebastianismo, Dom Luís Rei de França e a “A História do Imperador Carlos Magno
e dos Doze Pares de França” (FERRETTI, M. 1989) foram agregados a sua
ritualidade, na capoeira as músicas populares vem sendo agregadas a ritualidade
local dos grupos. A característica mais interessante no que diz respeito a
religiosidade das rodas do mestre Patinho é que consistem num entrecruzamento
muito forte entre as culturas dos “mazingas e cambindas e outras artes marciais
de angola e você chega a conclusão geral que a capoeira angola começou na
áfrica central e viajou para o Brasil (...) a capoeira deve ter evoluído uma
vez tendo chegado no Brasil” (DAWSON, 1994, p. 13) .
Essa evolução da capoeira no Brasil tem
se dado particularmente no Maranhão de uma maneira eclética, o que se conjuga
num ponto de vista interessante contraposto ao tradicionalismo da capoeira
baiana. Então pode até ser que no inicio
nem todos os folguedos fossem uma coisa só, mas a capoeira hoje tem um caráter
unificador, nas palavras e no ensino do Mestre Patinho.
“Uma roda de fundamento em harmonia, não só encanta
como eleva, como massageia, espiritualiza, autoafirma a personalidade. É muito
triste para as pessoas julgarem o que nunca tiveram idéia do que é” (ALLEX, F.
2012, p. 3) Se dividirmos bem essa frase para examiná-la, podemos ver fortes
significações em palavras como espiritualidade, julgamento e mesmo massagem no
sentido corpóreo das couraças bioenergéticas que a psicoterapia reichiana
dizia. A capoeira pode se constituir numa terapia poderosa no enfretamento das
neuroses humanas, relacionando-os com a agressividade no dia-a-dia.
“em
submeter-se à forte massagem bioenergética da capoeira e, sobretudo, de usar a
própria agressividade no enfrentamento da agressividade do adversário durante
as lutas. (...) Estudando as reações íntimas da capoeira dessas pessoas que
temiam a Capoeira, observamos, primeiro, que elas diziam raramente temê-la. Usavam
racionalizações do tipo ‘não gosto’, ‘é coisa violenta’, ‘o mestre é
autoritário’” (FREIRE, 1995, p. 205).
O julgamento
da capoeira tem sido a maior luta de todos os antigos mestres, desde a antiga
expressão baiana “a barra ta preta” (que se referia a barra das calças pretas
dos angoleiros temidos e perigosos) até mesmo ainda hoje a capoeira é tida como
uma prática marginal, a sua beleza e sua harmonia são vistas como simples
simulação de lutas e pontapés. Talvez a própria mentalidade do povo brasileiro
ainda esteja aquém da percepção da dialética corporal ou mesmo de uma
hermenêutica ou fenomenologia já que a roda da capoeira é a roda da vida. Por
isso talvez se veja que a popularidade e valorização da capoeira ocorre na
década de 90 principalmente na Europa, tendo a Alemanha como um dos países que mais importou mestres de capoeira no
mundo. Hoje, vemos a grande disseminação de vídeos de capoeira pela internet,
tem demonstrando como a observação das expressões corporais se constitui num
fundamento importante do observar para aprender. O fato é que por ser uma arte
essencialmente da prática de fazer os corpos falarem, só gostam de observar a
capoeira aqueles que também costumam praticá-la.
“Entendemos
que ao assistirmos uma dança vemos sujeitos dançantes e vemos formações,
treinamentos, concepções de mundo e de homem, concepções de corpo, que
inevitavelmente afirmam, confirmam, questionam, negam, enfim, o espírito de um
tempo-espaço histórico, sociocultural, ideológico e estético” (GOMES, 2006, p.
247).
Na capoeira experimentamos vemos esquecimento,
memória e vontade como delimitações do corpo que se se efetiva voltando-se
contra o esquecimento de forma que instintos, pulsões são jogadas ali num
efeito catártico vencendo a própria temporalidade. Esse sentido filosófico se
dá porque a catarse aspira as mais altas virtudes humanas. Dentro de um
materialismo nietzschiano, em que muitas vezes entram em confronto a o fim da
religiosidade para inicio da luta, se complementam benção (pontapé que não tem
nenhum pouco de misericórdia) e a rasteira. O esquecimento se dá de forma que o
passado escravizado não tem nada de louvável, é um passado monumental em que o
único remédio é o esquecimento. “Somente pelo esquecimento desse mundo metafórico primitivo,
(...) o homem se esquece enquanto sujeito” (DELEUZE, 1992, p. 41). Como foi
dito no início do artigo, o processo de subjetivação do corpo enquanto
vinculação com antepassado é a rememoração do sujeito ancestral, é quando se da
incorporação e o transe da capoeira que o sujeito esquece de si, realizando
façanhas muitas vezes incompreensíveis até para quem as realizou.
É
a tentativa de superar a dualidade cartesiana de corpo e mente, por isso nesse
sentido a capoeira é mais que dialética, num sentido nietzschiniano assim como
do Mestre Pastinha “O corpo é o grande sistema de razão” (PASTINHA,
1984, p. 20), o fio condutor do pensamento.
“A capoeira não tem
propriamente um método. Se o tem, é o da desconstrução. Constrói-se para
desconstruir. Ela desconstrói até mesmo suas próprias referências e seu
aprendizado, é, na verdade, uma desconstrução de si.” (OLIVEIRA, 2007, p. 176).
Assim ao nos debruçamos novamente com a problemática metodológica o principio
da capoeira não tem método e por isso a sua desconstrução. A capoeira se inicia
na espontaneidade, cada lugar é diferente, cada grupo tem suas características
e tem a liberdade de ser ou não ser sem finalidade.
6.
Referencias
Bibliográficas
BARBOSA,
Wilson. Atrás do muro da noite; dinâmicas
das culturas afro-brasileiras. Brasilia: Ministério da Cultura. Fundação
Cultural Palmares.
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